Pra não esquecer

O dia é 1º de outubro de 2013. A areia molhada é fina, macia e quente. A água do mar, agradavelmente morna. Das nossas bocas dançam para a vida palavras de prazer e gratidão. Ondas perfeitas nos convidam a “pegar jacaré”: corpos deslizando sem nenhum apetrecho. Pássaros de cantos e plumas nunca antes imaginados observam, do alto, nossos gozos de alma. São seis da tarde numa praia linda da Tailândia, uma que anos atrás foi varrida por um tsunami gigantesco e letal.

A temperatura é alta, calor tropical. E o sol, que hoje brilhou forte após dias sufocado por uma pesada, negra e insistente barreira de nuvens, começa a dar adeus a um esplêndido dia nas nossas vidas, espremendo-se entre brechas de mais nuvens escuras e nada misericordiosas. Mas o brilho laranja dourado do rei dos astros ainda cá está, imponente, atrevido, razão principal da nossa euforia.

Outubro é o último mês das monções na Tailândia e aquele em que mais água cai do céu. Que tolice, pensariam, virmos pra cá pra pegar chuva. E poderiam mesmo estar certos. Mas antes nunca houve tempo, os dois ocupados demais, trabalhando demais. Felizes, é verdade, mas sem tempo. (Ah, o caminho de volta ao simples e folgado, cada vez mais desejado.) Além disso, a reserva do hotel, feita um ano atrás, expirava no fim do mês. E viemos, torcendo pra que nosso santo forte nos presenteasse com céus abertos. Caso não, pensamos, teríamos tempo de sobra pra descansar, ler bastante. Diego acaba de embarcar na inesquecível jornada dos Cem anos de solidão, de García Márquez, e eu estou entregue aos olhos azuis de O tigre na sombra, de Lya Luft, autora que cativou minha alma há tempos. Poderíamos ainda caminhar na praia, mesmo sob chuva, pois amo me ensopar do pranto purificador do céu, quando oportuno; embrenhar-nos em uma cultura totalmente diferente da nossa; conhecer pessoas; apreciar a culinária tailandesa onde ela nasceu; fugir do insistente frio de Melbourne. Sedutores planos que a iminência de chuvas torrenciais não intimidam.

Ficamos no mar por bastante tempo, felizes, crianças de novo. Sol, águas mornas de cor turquesa e ondas perfeitas são, pra nós, sinônimo de vida. Ali, extasiados, decretamos que já é passada a hora de buscarmos um canto mais quente pra morar. Somos, sim, gratos àquela que por três anos consecutivos foi eleita a melhor cidade do mundo pra se viver, mas nossa alma é puro ardor, clama calor. E decidido está, entre gargalhadas de puro júbilo.

Entre uma onda e outra, envio Reiki ao céu. Com as palmas das mãos viradas pro firmamento, faço de mim um instrumento da energia de cura universal e convido as nuvens sombrias a voarem pra longe dali. Ele sempre apóia minhas maluquices:

– O que quer que você esteja fazendo, faz pra lá também, onde o sol nasce.

Amo esse homem que não precisa entender meu misterioso mundo esotérico pra me encorajar e ainda mais me amar. Ele confia em mim e nas minhas tantas doidices, ensina-me as coisas práticas da vida, bom virginiano que é. Não fosse por ele, eu viveria bem mais lá do que cá, e isso não é bom.

– Pra boiar, você enche o pulmão de ar – ele diz -, espera seu corpo se estabilizar na superfície e depois vai soltando o ar devagarinho, mas mantendo o pulmão sempre mais cheio do que vazio.

E pela primeira vez na vida, aos 41 anos de idade, eu consigo boiar. Beijo-o repetidas vezes, empolgada qual criança ante a minha mais nova habilidade. E o agradeço por me ajudar a ser um ser mais terreno.

Após pegarmos várias “últimas” ondas, saímos do mar. A temperatura da noite que chega mansa é tão agradável quanto a da água. Chinelos nas mãos, cangas na minha bolsa, ele com a mochila fotográfica nas costas, caminhamos seminus rumo ao restaurante de beira de praia, a poucos metros de distância. A estrutura é simples e convidativa: mesas e cadeiras de bambu, luminárias de vela sobre as mesas, pés tocando a areia macia e ainda morna, e a simpatia do povo nativo.

– “Sawadi ka” – cumprimentamos o garçom e, de volta, recebemos um caloroso sorriso, reconhecimento à nossa tentativa em falar sua misteriosa língua, formada por intrigantes caracteres e uma fonologia marcada por sons inesperadamente interrompidos, seguidos de outros que se estendem de forma quase infinda, como se o interlocutor quisesse parar o tempo e sorver o momento presente um tanto mais.

Meu amor pede uma Singha bem gelada, a cerveja local que ele mais aprecia. Eu, que há tempos já não sou dada a prazeres etílicos – acho que meu fígado cansou-se dos tantos anos de embriaguez e, agora, pede ao cérebro que diga às papilas gustativas como essa substância é non grata -, delicio-me com água de côco bem gelada, néctar de Gaia, e degusto sua polpa macia, até não sobrar nada.

A brisa que sopra é suave, benfazeja, e a noite, que já tingiu o céu com um pretume que ainda traz ameaças de tempestades, torna o ambiente à luz de velas muito mais encantador, embalado pelo constante e preguiçoso quebrar de ondas na areia, onde pequenos siris e caramujos de variadas cores, tamanhos e formas, ocupam-se de um despreocupado sobreviver.

Enquanto aguardamos o jantar – peixe frito ao molho de tamarindo, outro ao molho de castanhas de caju e arroz branco com legumes -, conversamos sobre tudo um pouco. Após oito anos juntos, eu e ele somos ainda melhores companheiros de vida e de viagens. Sabemos conversar horas a fio, rir de nós mesmos, ser terapeutas um do outro e, sem embaraço, acolher o silêncio necessário quando cada um vai pra dentro de si mesmo. E nessa praia quase deserta, onde não estamos distraídos ou hipnotizados pelos apelos da internet, temos mais tempo pra nós. Relembramos e saboreamos histórias conjuntas, recontamos outras tantas vividas antes da vida nos unir, e as ouvimos como se fosse pela primeira vez, reconhecendo no olhar do outro o amor cúmplice e terno. Também adoramos conhecer pessoas, e estamos sempre iniciando conversa com qualquer desavisado que “der sopa”. Nessa noite nossa vítima é o Luin. Cria da terra, 20 e poucos anos, garçom do restaurante há oito: ele realmente sabe vender o peixe das águas azuis.

Ele nos conta que aprendeu inglês sozinho:

– Lendo livros – pisca o olho e sorri aberto. Diz que é feliz ali. A ele contamos um pouco sobre nossa vida em um país estrangeiro,  e ensinamos como carregar vídeos no Youtube. E aprendemos sobre o transporte mais barato pra ir do resort onde estamos hospedados até Phuket.

O jantar não demora a ser servido. Entre garfadas e suspiros, nos deleitamos com a riqueza de condimentos da culinária local, muito bem representada no restaurante cujo nome ressalta a alvura das areias da praia paradisíaca.

– “Ka poon ka” – despedimo-nos do Luin, nos divertindo com nosso tailandês,  que resume-se a apenas três palavras.

– “See you tomorrow” – acena ele, sorrindo.

De mãos dadas rumamos para o hotel. A chuva torrencial não vem. Não nessa noite.

– Nosso santo é forte, não é amor? – me vanglorio, com risadas altas. Ele concorda.

Há estrelas no céu e eu acrescento, entusiasmada:

– E pra fechar a noite, vamos tomar banho olhando as estrelas! (o boxe externo do nosso quarto de hotel não tem teto, certamente projetado por um apreciador das coisas boas e belas da vida.)

Às nove da noite, a água do mar que banha nossos pés ainda é morna, e um suspiro de prazer preguiçosamente escapa da boca do meu companheiro de vida. Ver a alegria dele sempre me deixa feliz.

– Amor, não quero nunca esquecer esse momento, aqui está tudo o que mais gosto. Como fazemos pra não esquecer? – pede ele, envolto em uma luz que vem de dentro e não se vê com os olhos.

– Já sei, amor, vou escrever sobre esse momento, aí vamos sempre poder lembrá-lo! – respondo, entusiasmadíssima.

– Isso, amor, escreve em forma de conto, como em Cem anos de solidão – sugere ele, em um doce desvario de quem recém embriagou-se dos encantos de Márquez. Solto uma gargalhada alta, num jeito muito meu, divertindo-me por ele imaginar possível tal feito. Empolgada, pois escrever é uma paixão inerente à minha alma, anuncio o título que diáfano, mas óbvio, pousa na minha sonhadora cabecinha:

– “Pra não esquecer”, amor, é esse o título do conto!

Ele ri comigo, pega a minha mão, e seguimos plenos, a passos despreocupados, com tempo de sobra num tempo em que até o que falta, não falta. Nem sobra.


26 Comments

  1. tuca maia

    Ô ooooo gente! !!!
    Que lindoooo, parece que estava ouvindo sua voz, contando esse conto.
    Saudades. .nina

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    • Karina

      brigadim, tuquinha!!!!!! saudades tb, querida linda! beijos pra vc e pros seus meninos lindos!

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  2. Tati

    Amigaaaaaa linda do coração ,
    Que delicia começar meu sábado c um conto tão perfeito, cheio de aromas, amor, música do mar… Vc é incrível!! Acho que pode investir em escritas e quem sabe um livro
    Linda , linda vc é amiga!! Saudades sem fim!!
    Queria estar perto , mas o coração está!
    Te amo!
    Que sorte de vcs , que benção!!!
    Bjssss!!

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    • Karina

      tatiiiiiiii, que delícia né: o nosso amor, a vida linda, todas as bençãos! te amo muito, e sei que estamos sempre conectadas! beijos muitos!!!!!!!

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  3. Rita Lopes

    Lindo!!! Viva o amor e os lugares quentes!!!

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    • Karina

      viv, viva, viva!!! obrigada pelas preciosas dicas de texto, fildoca linda!!!! beijos com amor!

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  4. Thiago

    Até eu fiquei com vontade de mudar pra um lugar mais quente depois desse conto 🙂

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    • Karina

      amigooo, que ótimo vc por aqui! bora todo mundo mudar pra um lugar bem quentinho?! beijocas, querido!

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  5. Sandra Rosa

    Esquecer jamais para lembrar sempre. Vida que é assim, feita de memórias guardadas em gavetas e prateleiras. Esta merece um porta-retrato!!

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    • Karina

      merece sim, né sis!!! viva as memórias lindas!!! beijos <3

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  6. Fabíola Gabriel

    Eu fico tão feliz em te ver feliz! continue escrevendo, coloque esta canceriana para fora……bjs enormes.

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    • Karina

      tia biuuuuuuuuu, obrigada, amiga linda de viver! a canceriana cá está pra ficar 😉 beijos e saudades, ambos enormes!

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  7. Junia

    Nasce uma escritora! Na verdade, renasce, porque ela sempre existiu dentro de vc. Muito lindo, amiga! Keep walking!

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    • Karina

      obrigada, junia querida! i will keep walking, living, loving <3 muitos beijos, amei vc por aqui!

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  8. veruska

    Kaká, amigaaaa! (como sempre fazíamos ao nos encontrar cheias de vontade e histórias para contar!) – que conto lindo! lindo, real, emocionante e verdadeiro. E super feminino. Saudades muitas de vc. E cheia de gratidão por ter te encontrado nesta vida. Continue escrevendo, porque ler o que vc escreve dar prazer. Te abraço apertado e demorado.

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    • Karina

      amigaaaaaaaaaaaaa (deu saudade!)!!!!! obrigada, vevê amada, pelas palavras de incentivo! vou continuar a escrever, sempre que o tempo permitir, uma correria louca, amiga 😉 e o ano que já está quase acabando?! parece q ontem mesmo voltei do brasil. beijos muitos com amor e saudades <3

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  9. David

    Que viagem, hein amiga? Nas praias e no texto bem escrito. Realmente parece que vejo vocês na Tailândia! Sol pra vcs!

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    • Karina

      obrigada, david, pela visita e pelo sol!!!!! beijos <3

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  10. Bárbara Ávila

    Uau! Lindo texto, Nina!

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    • Karina

      obrigada, bárbara linda! muitos muitos muitos beijos <3

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  11. Kiko

    Queridos Ká e Diego, ler esse lindo conto me fez voltar no tempo e sentar-me no mesmo bar na beira da praia e provar o peixe frito ao molho de tamarindo com vocês!! Rimos muito! Rimos alto!
    E que mar, hein? Adoro esse azul turqueza também Ká!
    Que delícia de dia, hein meus amigos?
    Amor é isso: viajar junto mesmo quando não estamos! É reconhecer nas palavras e na forma toda a cumplicidade existente! É reconhecer-se no olhar do outro, na fala do outro, no carinho do outro!!
    Aiiiiii….. Saudade já é outra coisa!!
    Amo vocês!!
    Saudades sem fim!!
    Beijoooo

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    • Karina

      amigo-luuuuuz, obrigada pelas palavras lindas! sim, vc estava lá conosco, e sempre estará, pois vc mora no meu coração! saudades mil! happy 2014! te amo <3

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  12. Alyne

    Vamos montar uma comunidade dos que clamam pelo astro rei e rumar pra Byron bay numa caravana cheia do calor do amor? heheheheh Lindo esse momento, lindo o amor de v6! Obrigada por compartilhar a vida comigo, conosco! Um beijinho

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    • Karina

      vamos, amiga, vamos!!!!! te amo, querida, é uma delícia compartilha vida com vocês! beijos muitos

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  13. Renatinha

    Realmente, parece que estou escutando vc contar e não lendo.
    Tb adoro a Lya Luft.
    Te amo! Os 2!
    Bjos
    Zezita Cabela

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    • Karina

      que bom cabela!te amamos tb! happy 2014!!!!!

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